Texto originalmente publicado em 15 de setembro de 2015.
A morte da bebê Sofia, cinco meses após um transplante multivisceral em Miami (EUA), trouxe tristeza aos que acompanharam a luta da família, apresentou um novo personagem ao noticiário leigo – o citomegalovírus – e nos deixou uma série de reflexões.
Os pacientes transplantados são imunodeprimidos, mais suscetíveis a uma série de infecções, muitas delas de pouca gravidade para um indivíduo imunocompetente. O transplante exige a utilização de drogas imunossupressoras que objetivam controlar o processo de rejeição, às custas de um arrefecimento de nosso sistema de defesa (imunológico). Os medicamentos induzem um tipo de disfunção imune celular, facilitando a ação de organismos que gostam de se replicar dentro das células, dentre eles o citomegalovírus.
Membro da família dos herpes vírus humano, onde um total de 8 tipos já foram identificados, o citomegalovírus tem dentre seus “familiares” o vírus da herpes (herpes labial – “sapinho”; paralisia de Bell), da varicela (“catapora”), do herpes-zoster (“cobreiro”) e do Epstein-Barr (“doença do beijo”).
A infecção pelo citomegalovírus é bastante conhecida pela comunidade transplantadora, medicamentos e esquemas de prevenção são rotineiramente utilizados, entretanto a prevenção da infecção nem sempre é possível. Nesses pacientes imunossuprimidos não somente o risco de infecção é maior, mas uma vez que estabelecida frequentemente torna-se grave, rapidamente progressiva e de risco à vida. Esse tipo de infecção tem o costume de surgir após os três primeiros meses do transplante em si, ou seja, após a recuperação da cirurgia propriamente dita. Foi o caso da pequena Sofia, que após uma ótima recuperação da cirurgia, desenvolveu o quadro infeccioso, que trouxe como dano um quadro de fibrose (espécie de endurecimento) do pulmão, o que em casos graves é incompatível com a vida.
Em entrevista após o óbito da criança, o Dr Rodrigo Vianna, chefe da equipe responsável pelo tratamento, relatou uma realidade médica: apesar de uma cirurgia bem-sucedida, onde todos os órgãos transplantados estavam em funcionamento, nem sempre se alcança a vitória. As palavras do médico, “Nós estávamos do lado dela e de seus pais na hora da morte”, invariavelmente resgatam uma imagem de uma obra-de-arte:
Sir Samuel Luke Fildes retratou em 1877 o desespero de uma mãe aos prantos junto ao leito de sua filha adoecida, cujo pai, impassível, observa a distância o médico e transmite conforto à sua esposa. Observe que o pai traja roupas pesadas e não adequadas ao interior da residência, quem sabe pois teve que rapidamente sair em busca do doutor e no retorno logo voltou ao lado da mãe de sua filha. O pai sente a impotência de que mais nada pode fazer pela sua filha, a não ser confiar naquele senhor ali sentado em sua sala.
A criança desfalecida ocupa o centro do quadro, em primeiro plano com o doutor, recebendo o destaque de um feixe de luz. Ali está estabelecida a relação médico-paciente em sua forma mais pura. O médico intrigado, refletindo sobre o quadro clínico apresentado, ou aguardando uma melhora ou já em plena consciência de sua incapacidade de mudar o curso da doença já delineado. Observe que a mesa traz os recursos médicos (infusões, chás) disponíveis à época, já abertos ou preparados, tudo o que estava disponível já utilizado.
Trazido aos nossos tempos certamente semelhante cena se repetiu nas alas do Jackson Memorial Hospital de Miami. A medicina pode muito, muitas vezes, mas não pode tudo, sempre.